O que é o Aborto?

O que é o aborto?

Texto de Érika Pellegrino, originalmente publicado em 25/09/2014 no Blogueiras Feministas

 

A foto acima é de um embrião. Não é um bebê, não é um feto, não é um ser desenvolvido. E não é produto, nem nunca iria resultar em uma gestação, porque é o embrião de uma galinha com 72 horas de existência. Galinhas, como sabemos, não ficam gravidas.

É muito comum termos dúvidas quanto a definição de termos como: aborto, embrião, feto, gestação, etc. Na internet é comum encontrarmos definições confusas ou às vezes até propositadamente incorretas, especialmente em sites de grupos anti-aborto.

O objetivo desse texto é ser simples e informativo, por isso, peço desculpas por ter assumido o risco de ser cisnormativa com o objetivo de ser didática. Portanto, quando falo sobre mulher e feminino ou homem e masculino nesse texto, estou usando como referência pessoas cisgêneras e cissexuais. Se qualquer pessoa trans* tiver uma crítica ou questionamento, ficarei feliz em responder nos comentários.

Fecundação e gravidez

Tudo começa na formação dos gametas, que são os óvulos e espermatozoides. A mulher já nasce com os oócitos, que todo mês a partir da puberdade irão se maturar e dividir dando origem aos óvulos.

O óvulo é lançado na trompa e percorre o caminho até chegar ao útero, que está com a parede interna espessada. Não ocorrendo fecundação e implantação, essa parede vai descamar e ocorre a menstruação normal. Se acontecer de ter espermatozoides nadando por ali no período fértil, eles vão chegar até a trompa e alguns deles encontram o óvulo, em geral só um consegue penetrar na camada externa do óvulo e ocorre a fecundação.

Fecundação é uma série de reações entre duas células até que o material genético de ambos se juntem formando o zigoto.

As células então vão se dividindo e formando um aglomerado, que vai descendo pela trompa até chegar no útero, o que leva 4 dias. A implantação, do que agora é chamado blastocisto, naquela parede uterina espessada vai ocorrer por volta do 6º dia e vai se completando até o 10º dia. É a partir daí que as reações metabólicas farão o corpo produzir o HCG, que é detectado nos testes de gravidez.

Só dá para falar em gravidez ou gestação depois que ocorreu a implantação do blastocisto. Como eu disse no início, galinhas (ou peixes, ou ornitorrincos) não gestam porque o desenvolvimento do blastocisto da galinha vai acontecer dentro do ovo que é externo ao corpo dela. A gestante é parte integrante da gestação, não há potencial de desenvolvimento para fases mais maduras, pelo menos até onde a tecnologia avançou, sem que isso ocorra, e portanto só se fala em gestação depois que ocorre essa interação entre o concepto e a gestante.

 

Embrião e aborto

Usamos o nome de Embrião para a fase do concepto em que ele começa a se dividir e diferenciar em partes que darão origem aos diferentes órgãos e sistemas, essa fase compreende a 3ª semana até a 8ª semana.

Do terceiro mês até o final da gestação, chamamos de período fetal.

Falei tudo isso pra dizer que, em termos científicos, zigoto é uma coisa, embrião é outra, feto é outra. E nenhuma delas é sinônimo de bebê, da mesma forma que gestação e maternidade também não são sinônimos — tem mulheres que engravidam e não são mães, tem mães que nunca engravidaram…

Aborto é a interrupção da gestação até 20 semanas, ou com feto menor que 500g de peso ou com menos de 25cm de comprimento. A definição é determinada pela impossibilidade do concepto sobreviver fora do útero, e se o feto tiver mais de 20 semanas, mais de 500g e mais de 25cm existe teoricamente autonomia biológica suficiente para que ele seja capaz de sobreviver fora do corpo da gestante, e então fala-se em parto prematuro.

Por isso nas legislações frequentemente refere-se a interrupção da gestação — não é um eufemismo, é só um jeito de englobar casos mais precoces e mais tardios. Por exemplo, a lei brasileira permite interrupção da gestação no caso de fetos anencéfalos, e o diagnóstico só pode ser feito através de ultrassonografia após as 12 semanas, então é frequente que a interrupção seja mais tardia.

O aborto como evento natural é extremamente comum: nas gestações até 20 semanas, ocorre em 8 a 20% dos casos clinicamente detectados — ou seja, nos casos em que a mulher fez um teste de sangue ou urina e descobriu estar grávida, o que como vimos só ocorre a partir de cerca de 10 dias após a fecundação, mas geralmente acaba sendo um pouco depois, quando a menstruação atrasa. Isso faz com que um número ainda maior de abortos ocorra antes de a gestação ser sequer detectada, correspondendo de 22 a 26% das gestações. Se levarmos em conta as perdas antes da implantação, cerca de 50% dos óvulos fecundados nunca vai resultar num ser humano vivo.

Ou seja, para quem encara o aborto como equivalente a morte de um ser humano e defende os direitos civis de um suposto “nascituro” a natureza é uma baita genocida; pior ainda quando pensamos nos argumentos contra o uso de células-tronco embrionárias ou fertilização in vitro por conta da ideia de que a vida começa na fecundação.

Autonomia e escolha da mulher

Não vemos nenhum dos grupos autointitulados “pró-vida” protestando por enterros e atestados de óbito pelos quase 50% de abortos espontâneos ou perdas pré-implantações, mas vemos alguns praticando atentados contra clínicas e profissionais onde o aborto é legalmente praticado, o que me faz pensar que o nome mais apropriado seria “anti-escolha” ao invés de pró-vida. Parece que o aborto só vira uma grande questão que recebe a atenção geral quando é causado pela autonomia e escolha de uma mulher.

A coisa fica ainda mais anacrônica quando consideramos que pelo menos 68 mil mulheres morrem por ano em decorrência do aborto ilegal. O aborto praticado adequadamente no primeiro trimestre, por exemplo, é efetivo em cerca de 98% das gestações, com menos de 3% de complicações, que chegam a ser graves em apenas 0,65% dos casos — contra 25% de complicações graves nos casos de abortos praticados de forma insegura. A morte por aborto realizado de forma insegura é responsável por uma em cada 8 mortes relacionadas à gestação no mundo.

Apesar de todos esses termos e definições, não é a Biologia que determina as leis e o desenvolvimento de políticas. Cada país tem sua legislação específica, mais ou menos restritiva tanto em relação ao motivo do aborto quanto em relação ao período de gestação em que ele é permitido, e não existe na Biologia uma unanimidade para quando surge a vida e até quando pode-se fazer um aborto, porque não é daí que sai o substrato ético, então utilizam-se diversos critérios.

O que me parece ser unânime é que as escolhas sobre o corpo da mulher, que deveriam caber somente a ela, viram uma questão pública e todos acham que podem e devem lhes impor restrições, mantendo-as como cidadãs de segunda classe, com direitos abaixo até de grupos de células que parecem tanto com um ser humano quanto o embrião de galinha do topo desse texto. E o que parece ser critério para manter as mulheres em condições tão precárias, sem atenção ou garantia de direitos por parte do Estado é que sejam pobres – 98% dos abortos sem condições de segurança ocorrem no terceiro mundo.

Dia 28 de setembro é dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina, onde cerca de 1.1 milhão de mulheres pobres se submetem a um aborto inseguro todo ano. Dizer sim para a legalização não é dizer não para os métodos anticoncepcionais, não vai fazer com que seja uma decisão fácil, não vai estimular as mulheres a fazerem um aborto. É dizer sim ao reconhecimento dos direitos e à vida dessas mulheres, é parar pra pensar se realmente acha que todas essas mulheres (incluindo muito provavelmente alguém que você conhece, ou mesmo da sua família) são assassinas e deveriam estar na cadeia.

Referências

MOORE, K.L. & PERSAUD, T.V.N. Embriologia Clínica. Rio de Janeiro, Editora Elsevier, 2008.

Aprendendo embriologia no ite de embriologia da Famema: http://www.famema.br/ensino/embriologia/

Unsafe abortion, 2014. Por Melissa L Gilliam e Sadia Haider em: http://www.uptodate.com/contents/unsafe-abortion

Spontaneous abortion: Risk factors, etiology, clinical manifestations, and diagnostic evaluation, 2014. Por Togas Tulandi e Haya M Al-Fozan em: http://www.uptodate.com/contents/spontaneous-abortion-risk-factors-etiology-clinical-manifestations-and-diagnostic-evaluation

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