Eu Fiz Um Aborto

N.1

“O relato que vou dar aqui é muito doloroso para mim, e acredito ser para muitas outras também. Somente leia se você estiver bem emocionalmente, pois contém vários acionadores de violência e sofrimento. Apesar disso, é o relato de uma sobrevivente que estava disposta a morrer para manter a soberania sobre sua vida e o seu corpo, que o Estado e o Patriarcado tentaram assassinar com sua política de interdição das corpas das mulheres. Desde que tive contato com o feminismo fui a favor do aborto como uma forma de emancipação do corpo das mulheres, mas pensava que gravidez não desejada acontecia com frequência com as mulheres que não tomavam cuidado, ou que por algum motivo não tinham informação para evitar a gravidez e DST’s. De qualquer forma, sempre fui decidida a não trazer nenhuma criança nesse mundo em que vivemos, afinal muitas mulheres já as tem – seja com planejamento ou pelas circunstâncias.

A questão é que, infelizmente e desgraçadamente como muitas, estive em um relacionamento abusivo e com ciclo de violência psicológica com um homem cis-hétero. E essa condição também era uma contradição enquanto feminista, já que sabia muito bem como funcionavam os relacionamentos abusivos e a necessidade de dar um basta ao primeiro sinal de agressividade masculina…mas não percebi esse primeiro sinal e acabei me inserindo em um ciclo de violência sem me dar conta (como geralmente acontece nessas situações). Durante um tempo de minha vida segui com uma série de conflitos comigo mesma, e com isso aprendi a ouvir minha intuição, duvidar da heterossexualidade, já que ela é um regime político, identificar os primeiros sinais de um relacionamento abusivo e ouvir o aviso das manas.

O que aconteceu foi que quando estava finalmente me afastando do agressor, ocorreu uma relação sexual sem preservativo, o que depois identifiquei como uma violação. E identificar que você sofreu uma violação sexual é muito doloroso, já que ninguém quer estar no lugar de “vítima”. Depois disso finalmente me afastei do agressor, o que não foi sem conflitos, e tive que usar de meios legais para mantê-lo longe de mim, já que ele me ameaçava e me perseguia. E infelizmente, percebi que três semanas depois do ocorrido minha menstruação não veio. A princípio não acreditei que seria uma gravidez, já que tinha a plena convicção de que isto nunca aconteceria comigo. Sendo assim, perdi um bom tempo me convencendo do contrário, e somente acreditei quando no segundo exame de urina de farmácia o resultado foi positivo. Pelas minhas contas estaria na quinta semana, e precisava correr contra o tempo.

Minha reação inicial foi desespero, mas eu estava disposta a tudo para não prosseguir essa gestação, até a morrer. E decidi lidar com isso sozinha, pois me culpava por ter me permitido a permanecer em uma relação abusiva e ciclo de violência – o que vi depois ser uma armadilha do Patriarcado, pois as manas divididas e isoladas tem menos força de combate…essa armadilha quase custou a minha vida. Fiquei noites sem dormir procurando receitas de aborto com ervas pela internet mas o que achava, depois de muito custo, eram fórmulas vagas, como tintura de Cravo e Canela, chá de Arruda, mas nada preciso. Não sentia fome nem sono, e somente pensava em como acabar com essa situação, e por conta própria comprei em uma farmácia de manipulação vegetal o extrato de Arruda, o qual tomei sem nenhum critério. Sentia algumas pontadas no baixo ventre, ocorreu um pouco de sangramento, mas bem pouco…Tomei chá de Canela, também sem nenhum critério, com os pés de molho com água bem quente, mas os resultados foram muito poucos. Todo o tempo estava convencida de que não queria aquilo, e acabei fragilizando minha saúde por pegar peso e ficar sem comer, como uma greve de fome mesmo para não nutrir um aglomerado de células que não desejava.

Em meio ao desespero da corrida contra o tempo procurei os hospitais em São Paulo que faziam o chamado “aborto legal”, que na época somente prescrevia os casos de estupro, e como me considerei alvo de um, fui até o Hospital Pérola Byngton, centro médico de referência de saúde da mulher. Porém, já deveria ter duvidado que o Estado e a medicina ocidental e sua ginecologia – criada por homens brancos europeus que usavam de cobaia as corpas de mulheres dos países que foram colonizados – não serviriam para mim. Cheguei no guichê de atendimento, extremamente envergonhada por toda a situação e fragilizada física e emocionalmente e descrevi a situação. Quem me atendeu nem olhou na minha cara e perguntou se eu tinha Boletim de Ocorrência e exame de perícia do Instituto Médico Legal. Eu não tinha, e assim não pude recorrer ao “Aborto Legal” que o Estado oferece, o mesmo Estado que só reconhece como estupradores “maníacos das ruas”, e não reconhece que muitas mulheres são violadas em suas próprias casas, por homens que se dizem “companheiros” mas forçam uma relação sexual, ou a fazem sem nenhuma segurança para garantir seu prazer unilateral e falocêntrico.

Me deparei em um condição de impotência que somente senti diante da morte, e senti que estava morrendo aos poucos. Não tinha 3 mil reais para ir a uma clínica clandestina e resolver a situação de uma vez, e somente me vinha à cabeça os vários relatos de mulheres assassinadas pelo Estado brasileiro em decorrência de aborto clandestino, perfuração do útero, infecção generalizada, ou então presas por defenderem o direito ao próprio corpo. Assim, decidi encontrar do jeito que fosse o Cytotec, medicamento de gastrite proibido no Brasil desde 2006 por ser usado também para provocar abortos. A substância ativa desse medicamento é o Mifepristona, e em alguns países onde o aborto não é um crime, é usado como método de interrupção de gravidez aos primeiros meses de gestação, o chamado “Abortamento químico”. Visitei a página da ONG Women on waves, porém os medicamentos demorariam 3 meses para chegar, e aí já seria tarde demais. Durante a madrugada encontrei em um fórum de relatos um contato de alguém que enviava pelo correio o Cytotec, cobrando 50 reais por comprimido. Eu já sabia que há redes masculinistas que envenenam mulheres enviando comprimidos falsos com veneno, ou pessoas má intencionadas que vendem o remédio falsificado, que não traz nenhum efeito, mas decidi arriscar, pois o tempo escorria entre meus dedos. Enviei o e-mail, e a pessoa falou que um contato enviava do exterior, da Europa, de forma segura. Pedi fotos da caixa, bula e medicamento com a data do dia escrita para pelo menos me sentir mais segura, e a pessoa assim o fez. Como última alternativa arrisquei o que tinha para manter a minha vida.

Os medicamentos chegaram no prazo dentro de uma caixa de CD e fiz o procedimento durante a noite, que foi o indicado. Inseri 3 comprimidos no colo do útero e 3 embaixo da língua e fui dormir com as pernas elevadas, como indicado. Acordei com as dores, muito fortes, e o sangramento. Fui ao banheiro e um coágulo de sangue escorreu. O sangramento continuou por horas e fui me sentindo fraca, estava sozinha em casa, e pela manhã quando a garota que morava comigo foi sair para trabalhar me encontrou desmaiada. Ela me ajudou com remédio para dor, e fiquei de cama durante três dias. Sabia que tinha que me alimentar bem, estava aliviada por ter resolvido a situação, por ter decidido pela minha vida.

Uma semana se passou, e estava me recuperando física e emocionalmente, saindo com amigas. Foi na rua que comecei a sentir cólicas muito fortes e fui a um banheiro público, estava tendo uma hemorragia e desmaiei, sendo socorrida por paramédicas que me direcionaram para um hospital público da região. Fui atendida pela Ginecologia/Obstetrícia, onde me fizeram exame de sangue, o qual deu positivo. O resultado me desesperou novamente, e mudou o plantão de atendimento. A outra médica que assumiu o plantão nem olhou na minha cara e perguntou, muito grosseira, quantos Cytotecs eu tinha tomado, o que relatei. Ela disse que o resultado do exame tinha dado positivo, ao que eu respondi que não queria a gravidez, quando ela me respondeu duramente que naquele hospital “Não assassinavam pessoas”, que fosse procurar outro lugar. O hospital estava dando prioridade a um aglomerado de células, sem identidade e sem história, enquanto eu estava definhando para assegurar o MEU direito à vida! No dia seguinte fui a um Hospital Universitário, onde fui bem atendida. Inventei uma história, que achava que tinha tido um aborto espontâneo por conta do sangramento, mas que nem sabia que estava grávida. No exame físico o médico disse que parecia ser uma menstruação normal, que não se tratava de gravidez pois o colo do útero não estava fechado. Uma grande alegria tomou conta de mim, e me senti viva novamente. No exame de sangue saiu que eu estava com uma anemia aguda, e tive que tomar por meses um suplemento de ferro para me recuperar. A prática de esportes também foi uma aliada para recuperar minha força e minha segurança. Depois de um tempo fiquei sabendo que na região onde morava uma garota de 16 anos morreu de infecção generalizada por causa de aborto sem a curetagem. Curetagem é um procedimento de retirada de vestígios do útero após o aborto, e segundo alguns dados é uma das cirurgias mais feitas no país pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. Se os vestígios não são expulsos pelo corpo, apodrecem e podem causar a Sepse, infecção generalizada, que junto ao Estado brasileiro assassinou a menina que decidiu pela sua própria vida. Depois disso eu reconheci o verdadeiro significado de sobrevivente, pois eu sou mais uma sobrevivente de aborto clandestino no Brasil, um “Estado laico” onde os rosários ainda continuam querer controlar os ovários das mulheres e bio-mulheres (homens-trans que por algum motivo engravidem e não queiram prosseguir com a gestação).

Com isso, tirei muitos aprendizados, que quase custaram a minha vida, mas faria de novo porém com outros caminhos. Nenhuma mana, independente de seu grau de conhecimento ou militância feminista, está imune a situações que podem resultar em uma gravidez não desejada, seja por abuso, silenciamento – muitas vezes chamado erroneamente de paixão ou amor – ou mesmo por acidente. Mas a partir das dificuldades de uma, muitas outras podem evitar seguir esse caminho, e ajudar outras que estejam passando pela situação. É importante sempre levar a si mesma em primeiro lugar, confiar em si mesma, em sua intuição e no que dizem suas irmãs próximas, aquelas que realmente você confia, e se precisar contar com elas mesmo. Somente um ano após o ocorrido consegui conversar sobre com uma mana, a mais importante da minha vida, e ela disse que estaria junta comigo para o que fosse, me apoiado e auxiliado. O aborto não é um tabu, é uma realidade e uma decisão que deve ser tomada por aquelas que são engravidáveis, por mais ninguém. O direito de interromper ou prosseguir só diz respeito às mulheres. Porém, no Brasil – país com uma presidenta que se curva ao Cristianismo, o que não seria diferente já que ela é uma estadista – esse direito nos é roubado, e esse é um Estado com pena de morte ou encarceramento para as mulheres que ousam desafiar as ordens biológicas e hetero-patriarcais capitalistas. De qualquer forma, continuaremos propagando a rebeldia e retomando nossas corpas, nossa integridade e soberania sobre nós mesmas, e com isso vingamos a todas as mulheres que de alguma forma perderam suas vidas por decidirem por si mesmas o rumo de sua existência. A elas dedico esse relato, para que nenhuma mais se perca no meio do caminho.”